Quando criança, Camila Silveira sentia que era assolada, como descreve hoje, aos 42 anos, por “pensamentos negativos terríveis”. Na adolescência, ela desenvolveu uma relação excessiva com a comida, que gradativamente transformou seu corpo e ruiu sua autoestima. Em muitos momentos, se via perdida diante das crises sucessivas, do medo e da solidão. Apesar disso, concluiu duas graduações, casou-se e teve um filho. Mas só em maio deste ano que ela começou a tratar a ansiedade generalizada, a depressão e a compulsão alimentar que a acompanham há décadas.
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Camila se juntou às milhares de pessoas que têm enchido os consultórios da rede pública do Rio em busca de atendimento psicológico. Um levantamento da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para a campanha de prevenção ao suicídio deste Setembro Amarelo aponta que, entre 2020 e 2023, mais que dobrou a quantidade de pacientes da saúde mental nas unidades da prefeitura: um salto de 5.828 para 12.340.
Já os dados de janeiro a agosto de 2024 mostram que 28% dessas consultas foram para cuidar da ansiedade, com cerca de 2.160 atendimentos. Desse total, a ansiedade generalizada foi diagnosticada em 15% do público, aproximadamente 1.160 pessoas. Mas também se destacam os tratamentos de doenças como a depressão e o transtorno de pânico. Segundo especialistas, além dos fatores biológicos, o estresse proveniente de desafios sociais e ambientais, como a violência cotidiana no Rio, contribui para que esses males se espalhem.
— Os transtornos psicológicos são complexos, têm várias camadas, e o estresse com a rotina, apesar de não ser a principal causa de um tratamento clínico, potencializa a sensação de ansiedade, causa mudanças de comportamento. As pessoas passam a viver em alerta, preocupadas, ficam mais suscetíveis a surtos de raiva, não conseguem dormir e até fazem mais uso de substâncias nocivas, como o álcool — afirma Cheyenne von Arcosy, psicóloga clínica e pesquisadora no Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
No caso de Camila, ela procurou a Clínica da Família Maria Augusta Estrella, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, para fazer exames relacionados à diabete e à hipertensão. Num desabafo com a médica, no entanto, foi aconselhada a procurar um psicólogo. Antes que pudesse declinar pela falta de dinheiro, foi avisada que a unidade de saúde oferecia o serviço, gratuitamente, pelo SUS. Após um cadastro, ela foi chamada para começar o tratamento, que ocorre quinzenalmente.
A ansiedade generalizada, por exemplo, é conhecida pela preocupação excessiva com a rotina, que se manifesta em um medo constante. Como sintomas, há falta de ar, dor no peito, dormências e até paralisia. Mas Camila demorou a se abrir:
— Sempre soube que havia algo errado. Houve épocas em que eu não conseguia dormir, sentia uma falta de ar muito grande, parecia que eu estava infartando. Nunca gostei de conversar sobre isso, achava que as pessoas iam falar que é frescura, principalmente porque sou gordinha.
A compulsão alimentar, então, surgiu para dar vazão ao silêncio:
— Durante a tarde, eu comia desesperadamente, até passar mal. Essa hora do dia ainda é insuportável para mim, ainda mais somando o trabalho, que é de muita pressão e cobrança. Com o tratamento, consigo estar mais consciente sobre isso. Eu me sinto sortuda por ter conseguido a vaga para o atendimento. É a minha chance de conhecer uma nova Camila.
Filas a reduzir
Na rede da prefeitura, revela a pesquisa da SMS, mulheres como ela representam 75% dos atendimentos. E numa análise pelo bairro de residência dos pacientes, prevaleceram de janeiro a agosto deste ano, nesta ordem, os moradores das regiões de Campo Grande, Jacarepaguá, Centro, Penha e Irajá. Superintendente de Saúde Mental da SMS, o psiquiatra Hugo Fagundes diz que a prefeitura sabe da alta procura pelos tratamentos psicológicos e tem direcionado melhor os pacientes para diminuir as filas:
— A oferta está maior, mas passamos a direcionar melhor os atendimentos. Tem pessoas guiadas diretamente para tratamento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) ou crianças que vão à atenção psicomotora ou fonoaudiológica. Os serviços estão qualificados, mas sabemos que ainda há muita demanda.
Nesse sentido, dados da transparência do sistema de regulação de vagas da saúde pública básica, o Sisreg, mostram que, ontem à tarde, o tempo médio de espera para atendimento na psicologia na cidade do Rio era de 136 dias. Já na psiquiatria, chegava a 175 dias. Fagundes destaca que a sensação de insegurança vivenciada pelos cariocas e os desafios da rotina potencializam os diagnósticos que levam pacientes a essas especialidades:
— É importante considerarmos a qualidade de vida das pessoas, as rotinas delas. Sabemos que o estresse diário, a insegurança e o medo, as incertezas em casa e no trabalho esgotam a saúde das pessoas. Nossa missão é aliviar o sofrimento, ajudá-las a “funcionarem” dentro da própria lógica e condição mentais, sem ignorar seus desafios.
Para Lucas Siqueira, de 26 anos, o medo que ele tinha de palhaço, quando bebê, ajuda a dimensionar sua ansiedade: ele tinha crises de choro e chegava a vomitar de medo. A simples possibilidade de encontrar o personagem já o aterrorizava. Ao crescer, a fobia migrou para outras áreas, até se materializar no mistério sobre a morte. Essa o rondava não só em pensamentos, mas se aproximava constantemente. Primeiro, aos 9 anos, quando perdeu a visão do olho esquerdo. A segunda, aos 12, quando foi atropelado de bicicleta e ficou internado em estado grave. Na época, recebeu o diagnóstico médico de transtorno de ansiedade generalizada, condição que trata com medicamentos, terapia, exercício, trabalho e apoio da família e de amigos.
Nos planos privados
Lucas é de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, e, desde a perda da visão, faz acompanhamento psicológico pelo plano de saúde. Segundo dados do Mapa Assistencial da Saúde Suplementar, publicado pela ANS, em todo o país o número de consultas com psicólogos pelos planos também cresceu entre 2020 e 2023: um aumento de 133% no período, chegando a 45,1 milhões de atendimentos. Na trajetória de Lucas, a causa da cegueira nunca foi totalmente elucidada, mas a razão mais consistente é a ação de uma larva de rio. Segundo ele, a equipe médica levou cerca de um ano para chegar a essa hipótese.
— Era terrível não saber o que estava acontecendo comigo, achava que iria ficar cego de vez, que ia morrer, e isso me dava um medo gigante — conta ele.
A condição piorou após ter sido atropelado por um carro enquanto andava de bicicleta. Ele teve dois traumatismos cranianos, ficou cinco dias no CTI e, depois, passou a ter crises de pânico.
— Fiquei um tempo na cadeira de rodas, depois de muletas. Eu sentia que tudo acontecia comigo, que eu ia morrer. Ficava desesperado. Quando não pensava na minha morte, pensava na dos meus pais. Minha cabeça não tinha descanso — relata.
Atualmente, Lucas aborda as experiências traumáticas com bom humor. Sua mãe foi quem o incentivou, desde cedo, a fazer terapia e a buscar atendimento psiquiátrico. No processo para se estabilizar, ele ainda encontrou uma profissão na qual pôde “extravasar” a agitação provocada pela ansiedade. Inicialmente, arriscou o teatro, mas, depois, percebeu a vocação como professor de geografia. Em homenagem à área, tatuou no braço o titã grego Atlas, condenado por Zeus a carregar o peso do céu sobre os ombros.
— Hoje, posso dizer que estou bem. A terapia foi fundamental para isso, é um longo processo de autoconhecimento e equilíbrio. Sem a minha família, eu não teria tido tantos avanços — diz.
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